Conta a Deolinda que a Alexandrina[1],
quando estava na Póvoa em pequena, gostava de irritar os guardas-republicanos
cantando estes versos:
Co’as barbas de Afonso Costa,
Nós faremos um pincel,
Para engraxar as botas
Ao bom rei D. Manuel.
Estava-se em 1911 ou 1912. O novo regime transformara o
Colégio das Doroteias em quartel, humilhara a comunidade jesuíta e expulsara-a,
a sua modesta residência de madeira albergava agora a nova polícia republicana,
as obras da Basílica do Sagrado Coração de Jesus haviam sido suspensas, etc. A
nível nacional, havia o caso da apropriação dos templos pelo Estado, as Cultuais,
o exílio dos Bispos, perseguição de sacerdotes... Na quadra que a Alexandrina
cantava (e cujo alcance não podia apreender) estará certamente a rejeição de
tudo isto.
Num passo da Autobiografia, deixa ela transparecer o medo
que a nova polícia lhe inspirava:
Depois de
umas férias, ia para a Póvoa, eu e a minha irmã; tínhamos quem nos
acompanhasse, mas só depois de atravessarmos a freguesia. Íamos pelo
caminho-de-ferro e avistámos ao longe dois guardas-republicanos. Tivemos medo
deles e refugiámo-nos na volta de um caminho. Como minha irmã levasse um
cestinho com linho, eles imaginaram que ela levava fósforos (espera-galegos) –
proibidos naquele tempo – e perseguiram-nos. Nós fugimos e gritámos muito. Aos
nossos gritos acudiram várias pessoas. Já estavam para fazer fogo quando
compreenderam que não éramos portadoras de tal contrabando. Felizmente desta
vez escapámos à morte.
Do Pe. Mariano Pinho, que começou a dirigir a Alexandrina em
1933, sabemos que, ainda seminarista, foi vítima do regime republicano como os
Jesuítas professos. Esteve exilado na Bélgica, na Áustria e na Espanha.
Nestes anos iniciais da República, outra personagem de certo
relevo na vida dela, o Dr. Abílio Garcia de Carvalho, foi alvo de perseguições,
por pertencer, quando estudava no Porto, ao Centro Académico da
Democracia-Cristã.
Com estes e outros antecedentes (não esquecer que a
Capelinha das Aparições de Fátima chegou a ser metralhada, que a primeira
metade da década de 20 foi de descalabro político e económico…), não admira que
a geração da Alexandrina fosse salazarista, que visse em Salazar o libertador
do desgoverno prepotente que o precedera e que o justificava[2].
Entre as pessoas que mais de perto lidaram com a
Alexandrina, o Pe. Mariano Pinho há de exaltá-lo, embora moderadamente. Quem se
mostrará muito mais decidido no seu continuado e indesmentido apoio serão o Dr.
Abílio Garcia de Carvalho (presidente da edilidade poveira e governador civil
de Angra do Heroísmo) e a professora primária poveira Angelina Ferreira (visita
habitual da Alexandrina e uma das suas amigas mais íntimas)[3].
Veja-se este fragmento dum
discurso do Dr. Abílio Garcia de Carvalho,
pronunciado em 1934, como presidente da Comissão Concelhia da União
Nacional, no Teatro Garrett da Póvoa de Varzim e radiodifundido pela Emissora
Nacional e que vem no seu livro Política
do Estado Novo na Póvoa de Varzim:
Eu sei e
sabia já que as vossas almas não podiam deixar de sentir, deixar de viver
intensamente o momento glorioso que passa!
Glorioso para
Portugal, que alevanta bem alto o pendão sagrado das Quinas, sobre um século de
apagada e vil tristeza.
Século em que as
doutrinas dissolventes demo-liberalistas, decalcadas em figurino estrangeiro,
se tornaram inadaptáveis para nós por espírito da raça e por condições
dinâmicas da alma portuguesa, que se orgulha da sua independência e da sua
história.
No primeiro plano desta fotografia, que vem na Política do
Estado Novo na Póvoa de Varzim, mas data de Setembro de 1933, vêem-se o Dr.
Salazar, D. Virgínia Campos e o Dr. Abílio de Carvalho. De pé, estão várias
notabilidades poveiras do tempo, entre elas o Dr. Josué Trocado, cunhado da D.
Virgínia (por trás da cabeça do Dr. Salazar).
E esta
história de maravilha continua a iluminar o mundo com as páginas do passado e
com aquelas que ora se escrevem e são outros tantos faróis cuja luz potente
ultrapassa as fronteiras, pondo em relevo o valor dos nossos heróis, a mística
dos nossos santos, a doçura das nossas famílias e, mais que tudo, neste
momento, a prudência e virtude das nossas leis, dimanadas da alma de Salazar,
instrumento admirável da Providência.
As doutrinas
demo-liberalistas, tornando o homem senhor absoluto dos seus actos, afastando-o
da Corporação, isolando-o das suas ligações naturais, consideravam o homem um
mero número ao lado de outros números, sem impor entre eles um traço de união a
fim de congregar os interesses comuns, as aspirações legítimas e as ideias
altruístas, cujo expoente mais perfeito é a caridade cristã que o catecismo nos
ensina.
Por esta
forma, a Pátria portuguesa foi informada durante o último século por essa
doutrina materialista dissolvente e pagã, que por estranha condição deificava o
homem.
Doutrina que
se agarrou ao Estado, corroendo-o de tal forma que hoje há necessidade instante
de arrotear de novo a terra portuguesa, para que o sol da Verdade, o sol da
Esperança e da Caridade fecunda a inunde de luz, destruindo o joio daninho; e
para que, reflectindo-se, vá depois iluminar os espíritos obcecados e inquietos
e determine firmemente a confiança na acção e no êxito da empresa.
Da Prof.ª Angelina Ferreira, ouçamos também parte dum seu
discurso; data de 1938. A
autora começa a falar do “ressurgimento nacional” a partir dum quadro
ilustrador:
Não havia
portos. O governo não cuidava da sua conservação nem tratava de construir os de
extrema necessidade para proteger a vida dos pescadores. Hoje a situação é
diferente. Salazar tem consagrado elevadas quantias para o desassoreamento e
apetrechamento dos portos, especialmente aqui o grande melhoramento do porto de
Lisboa, onde os maiores vapores já podem entrar. Mas temos mais, e para não ir
mais longe, aqui muito perto de nós, na vizinha Póvoa, só Salazar pôde realizar
a mais justa pretensão dos poveiros, meus conterrâneos.
A barra do
mar da Póvoa devorou vidas e vidas de valentes e robustos poveiros. A cada
passo se voltavam ao tentar transpor essa perigosa barra, e o luto, a viuvez e
a orfandade entravam em muitos lares que, despojados do braço forte do chefe de
família, se viam em luta com a maior miséria.
Mas Salazar, que é justo e
bom, acudiu a proteger os pobres pescadores poveiros.
Nestes três casos há que reter que se trata de pessoas a
quem o regime não trouxe benefícios pessoais de monta, e, além disso, que se está
a lidar com gente culta e reconhecidamente honesta[4]. As
suas opções salazaristas de resto reflectiam o sentir generalizado do país[5].
[1] Cristo Jesus in Alexandrina, p. 20, nota.
[2] A Alexandrina conhecera
Salazar em Braga, no Congresso Eucarístico, onde a intervenção do futuro chefe
do Estado Novo foi um sucesso. Aliás, aquela gigantesca movimentação deu
certamente a Gomes da Costa, que esteve presente, a noção bem real do fosso que
separava os governantes do que eram as aspirações populares.
[3] Conhecem-se outras pessoas
ora mais ora menos íntimas da Alexandrina que foram duma honestidade e
inteligência reconhecidas e que militaram decididamente no campo do regime
vigente: o Dr. Abel Pacheco (que era «cidadão poveiro» desde 1937) foi talvez
mais anti-republicano que salazarista, como se vê dum artigo que um dia
escreveu num jornal da Póvoa; o Dr. Josué Trocado, que visitou ao menos uma vez
a Alexandrina, era uma referência poveira do Estado Novo; a D. Virgínia Campos
foi também uma figura reconhecidamente salazarista e esteve em contacto com a
Alexandrina; o Prof. José Luís Ferreira (que, como a D. Virgínia Campos, nunca
é mencionado no biografia da Alexandrina, mas que devia estar bem a par do que
com ela se passava, era uma notabilidade católica na Póvoa e era pelo menos
convictamente anti-republicano) …
[4] Em relação ao Dr. Abílio
Garcia de Carvalho, note-se que a sua comunicação ao Congresso Eucarístico
Diocesano que teve lugar na Póvoa de Varzim em 1925, intitulada «A Eucaristia e
a Medicina» e que veio a ser publicada em jornais nacionais, mas também
espanhóis e franceses, tinha sem dúvida a justificá-la a absurda proibição
republicana de levar a Comunhão aos doentes.
[5] Referindo-se aos opositores do regime, que
contabiliza em 5%, escreveu o Prof. José Luís Ferreira na Ideia Nova em 10/09/45:
“Andam ao rubro certos
cérebros estonteados com as palavras Democracia,
Liberdade, Unidade Democrática, talvez ingenuamente crentes de que serão
capazes de arrastar para si, quais magnéticas montanhas, a grande massa da
população de Portugal. Não se pode afirmar que anda meio mundo a enganar o
outro meio, como é frase feita de há séculos em nosso idioma, porque, na
realidade, andarão apenas 5% de iludidos a julgar que enganarão os 95% restantes”.